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Parir em Paz

Parir em Paz

Resposta doDr. Ricardo Jones a um jornal que publicou uma notícia contra partos domiciliares

Caríssimos:
O documento que critica a assistência ao parto em ambiente não-hospitalar
(Opinião: Parto em casa: retrocesso), escrito pela presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro e publicado em jornal de grande circulação no Rio de Janeiro, não poderia ser muito diferente do que se esperava, partindo da expoente local da
corporação que se beneficia diretamente com a medicalização do nascimento.
Infelizmente repetiu-se a catilinária que estamos acostumados a assistir quando o debate se acerca da assistência ao parto e a autonomia da mulher nas escolhas sobre profissionais e contextos em que ele vai ocorrer.

Na esperança de encontrar alguma novidade estimulante para o debate mais uma vez eu procurei meus óculos para tentar ler aquelas famosas "letrinhas miúdas" existentes no final de uma publicação qualquer que possua pretensão científica. Sem surpresa, no final do texto não havia nenhuma nota, nenhuma letrinha média, grande ou pequena; o texto da minha nobre colega não traz NENHUMA comprovação das afirmações que apresenta. Nada. Nenhuma informação é baseada nas evidências científicas atualizadas que brotam dos estudos de várias partes do planeta. Absolutamente NADA, como é rotina nas manifestações dos colegas que tratam de um mito profundamente temido por nós obstetras: o parto sem os aparatos mágicos que construíram a nossa profissão às expensas de uma compreensão defectiva da mulher. Nada do que a nobre doutora fala no seu texto pode ser considerado além de uma OPINIÃO pessoal, construída através de anos de profundo temor pelo evento do parto, num absoluto distanciamento do processo natural de trazer vida ao mundo. Nós obstetras somos criados e construídos para ter pavor do evento natural, e moldados para interferir nele mitologicamente através de nossas máquinas e instrumentos para, controlando-o, afastar o medo que dele temos. Todas as afirmações da doutora estão afastadas dos estudos que nos mostram a segurança do parto normal realizado em domicílio, inclusive negando exemplos positivos contundentes como os da Holanda, onde 33% das crianças chegam ao nosso convívio na intimidade dos seus lares (com um dos níveis de morbi-mortalidade materna e perinatal dos melhores do mundo), ou mesmo o trabalho de Johnson e Daviss de 2005 - publicado no British Medical Journal - acompanhando mais de 5000 mulheres que tiveram seus filhos em casa, com o auxílio de parteiras profissionais (CPMs), com resultados perinatais iguais ou superiores aos encontrados em hospitais. Além disso, o trabalho de Johnson & Daviss nos demonstra um custo muito menor, com maior satisfação materna, menor morbidade para as mães e recém nascidos, conseqüentemente apresentando taxas mais elevadas de amamentação. Ao mesmo tempo em que minha colega fecha os olhos para as vantagens do parto domiciliar em lugares como os países baixos, também se nega a avaliar a realidade americana de alto investimento em tecnologia - mas que ostenta o vergonhoso posto de 41º país em mortalidade materna - e não reconhece que o Brasil, ao imitar o modelo americano
iatrocêntrico (centrado no médico), etiocêntrico (centrado na doença) e hospitalocêntrico (centrado no hospital), só poderá amargar - na melhor das hipóteses - os mesmos resultados ruins que o paradigma americano produz para o nascimento humano.

Todos os exemplos e os estudos internacionais que falam a favor da melhor qualidade dos partos domiciliares são esquecidos, negados ou sonegados pela colega, que prefere investir na cultura do medo que nega as evidências e mantêm as mulheres amordaçadas e silentes, prisioneiras dos mitos "mutiladores" e "assassinos" relacionados com o parto em casa; nada mais
coerente para um paradigma que mantém as mulheres tuteladas e incapacitadas de gerar e parir com liberdade e autonomia. Felizmente, outros países menos condicionados às forças do mercado estão acordando para a importância de restituir o protagonismo à mulher, e tomando atitudes determinadas nesta direção. Com esta coragem de mudar e desafiar mitos calcificados pela falta de crítica, a Inglaterra, no ano de 2006, através da liderança de Patricia Hewitt - Ministra da Saúde - propôs uma mudança radical e estratégica na atenção às grávidas, incentivando os partos fora do ambiente hospitalar, exatamente por não haver nenhuma comprovação (em milhares de anos de história) de que os hospitais produzam melhoria nos resultados maternos e
perinatais em população de risco habitual. Ao lado disso TODAS as publicações abrangentes que avaliam os riscos da atenção extra-hospitalar ao nascimento com uma metodologia correta apontam na mesma direção: a comprovação de que os partos planejados no domicílio, quando comparados com os hospitalares, apresentam resultados iguais ou melhores na atenção às
pacientes pertencentes a este mesmo grupo populacional de risco habitual.

Restitua-se o parto às mulheres e elas continuarão a revolução libertária. Liberte a mulher e a sociedade inteira se modificará como conseqüência. Não é possível uma sociedade justa e digna quando somos recebidos neste mundo através do arbítrio de mulheres caladas e corpos invadidos. Confiscar das mulheres seus corpos e seus partos e mantê-las reféns de um modelo tecnocrático que NÃO comprova sua superioridade é uma das maneiras mais hábeis de manter cidadãs caladas e dóceis.

Entretanto, as palavras da doutora fazem eco em uma boa parte da população feminina, e basta conversar com 10 mulheres da classe média, embebidas num mundo de celulares milagrosos e celulites desastrosas, para nos darmos conta de que ELAS MESMAS organizam as palavras que a líder da corporação médica vai escrever. O discurso da medicina emana dos pacientes como vasos comunicantes, numa dialética silenciosa que perpassa pelos mitos e valores profundos que controlam inconscientemente nosso proceder. Prisioneiras de seus medos, as mulheres ainda se encontram atordoadas diante de sua própria participação no evento expropriativo de suas responsabilidades femininas. Somente a mudança desses valores é que poderá nos fazer mudar tais condutas, assim como a criação de uma nova divindade se segue à queda de um velho Totem. Felizmente, nosso otimismo nos obriga a enxergar que a mitologia depreciativa da mulher e do feminino não se manterá indefinidamente em um mundo de informação instantânea e com ampla oportunidade de contraditório.

Nesta trilha de libertação, as ferramentas mais poderosas são a informação e a ..... paciência.

Apenas através do fortalecimento destas duas asas poderemos alçar vôo e combater a mitologia contemporânea, que nos puxa para o passado, que nos faz imitar modelos americanos fracassados, que nos empurra para a crença da inferioridade biológica da mulher e que cria profissionais da saúde divorciados da realidade libertadora do nascimento.
Um abraço

Ricardo Jones, MD Obstetra - Homeopata
ReHuNa - Rede pela Humanização do Parto e Nascimento
HumPar - Rede pela Humanização do Parto - Portugal
IMBCO - International MotherBaby Childbirth Organization
Instituto Jean Bergés de Psicanálise e Medicina
1 - Marie Wolf and Sophie Goodchild, "Mummy State: Childbirth Revolution". Independent on Sunday (London), May 14, 2006
2 - Organização Mundial de Saúde. Assistência ao Parto Normal: Um guia Prático. Relatório de um Grupo Técnico. Genebra, 1996. 53p.
3 - Enkin M. & Cols, Guia para Atenção Efetiva na Gravidez e no Parto. 3a Edição - Guanabara Koogan 2000
4 - "Outcomes of planned home births with Certified Professional Midwives: a large prospective study in North America." Kenneth C. Johnson, senior epidemiologist, Betty Anne Daviss, project manager. BMJ 2005; 330:1416 (18 jun).
5 - T. A. Wiegers, J. van der Zee, and M. J. Keirse, "Maternity Care in the Netherlands: The changing Home Birth Rate", Birth 25, no 3(1998): 190-97
6 - Anderson, Rondi E., CNM, MS and Patricia Atkins Murphy, CNM. DRPH. 1995.
"Outcomes of 11,788 Planned Home Births attended by Certified Nurse Midwives: A retrospective descriptive Study". Journal of Nurse Midwifery 40:483-492.
7 - Rooks, JP, ML Westherby, EKM Ernst, S Stapleton, D Rosen, and A Rosenfield. 1989 "Outcomes of Care in Birth Centers: The National Birth Center Study". New England Journal of Medicine. 1804-1811.
8 - Schienzka, Peter F. 1999. "Safety of Alternative Approach to Childbirth". Department of Sociology, Stanford University, Palo Alto, CA
9 - Challenges in measuring maternal mortality. The Lancet, Volume 370, Issue 9595, Pages 1291-1292 A. Yazbeck

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